#02 - O dia em que um colégio católico tentou calar adolescentes LGBT
Que fique como dica - nunca mexa com a juventude LGBT!
No complicado ano de 2018, eu estava no segundo ano do Ensino Médio. Um ano importante, muito conteúdo para o ENEM, várias aulas de matemática e química, que a mim não serviam de nada, pois eu queria mesmo era escrever e entrar logo na faculdade de jornalismo.
Enquanto as aulas de exatas aumentavam, as de humanas diminuíram. As aulas de filosofia e sociologia que aconteciam duas vezes por semana no 2º ano, aconteciam apenas uma vez no 3º ano. Nosso professor era muito querido pelos alunos e a coordenação, mantinha sempre o papo aberto com os alunos e era super aberto ao debate.
Como atividade complementar, foi nos dado o trabalho de falar sobre alguma tribo urbana. A minha equipe, lógico, escolheu falar sobre LGBT. E não deixava de ser uma grande tribo urbana. Sobrevivendo a revoltas policiais, crises sanitárias e achando um lar na cultura do vogue e das saunas, a comunidade LGBT resiste até hoje.
Fizemos um cartaz e nele colamos fotos de pessoas que sofreram LGBTfobia. Entre elas, estava Dandara, travesti brutalmente assassinada em 2017. O trabalho todo foi feito oralmente, no cartaz apenas as fotos das vítimas e da bandeira do Orgulho. As fotos não foram do dia da morte, vale ressaltar. A turma toda apresentou e todos foram muito bem, que decidiram colar os cartazes pela sala. Lembro que nesse período, uma colega de classe tinha machucado o quadril e ao invés de estarmos na nossa sala no terceiro andar, fomos para o térreo, onde a tarde era a sala do 9º ano.
Chegamos na escola no dia seguinte e percebemos que faltava algo: nosso cartaz. Ele sumiu misteriosamente de um dia para o outro. O trabalho da equipe que falava de futebol , funk e tribos indígenas continuava lá. No intervalo entre as aulas, fui com alguns integrantes da equipe à coordenação para saber o que tinha acontecido.
Mal entramos na sala da coordenação e outra profissional assumidamente homofóbica entra junto com a gente, foi aí que pensei: “é pior do que pensei e lá vem o discurso LGBTfóbico”. Como as palavras têm poder, foi justamente o que aconteceu. “O trabalho de vocês estava fora do contexto”, disse uma das profissionais. Bom, não sei o que é contexto para ela, mas qualquer pessoa com acesso a TV e Internet sabe quem eram aquelas pessoas do cartaz. Não adianta esconder algo que já está aí fora. “Não é papel da escola discutir esses temas” foi outra violência verbal que ecoa em mim. Lembro que disse algo do tipo: “não adianta esconder algo como a LGBTfobia enquanto isso está nos livros, nas novelas e nos jornais. Fica é feio um colégio como esse fingir que isso não é um problema real”. Me ignoraram e falaram que os pais reclamaram.
Essa é uma triste realidade desses colégios religiosos, os pais têm muita voz e influência na coordenação e, numa era em que essas organizações de ensino religiosas estão em crise, se os pais falam, está falado. Atrás da coordenadora, havia um enorme armário e pensei que o cartaz e outras coisas “confiscadas” dos alunos estavam lá. Nada do nosso cartaz até hoje.
Apesar de já terem passado quatro anos do ocorrido, uma violência dessas fica no nosso inconsciente. Num espaço que ao mesmo tempo influenciava ser você mesmo era o mesmo que reprimia um trabalho feito para conscientizar os alunos. Só recentemente percebi como esse simples ato de retirar um trabalho sobre a minha realidade e a de tantas outras pessoas foi uma violência. Mas ela acontece de forma implícita, fica recalcada no inconsciente e a gente acha que esquece. Quem dera fosse assim.
Na época pensei nos inúmeros alunos gays, lésbicas, bis e, especialmente, as pessoas trans que são mais silenciadas que nunca. É muito triste você estar nesse processo de descoberta do corpo e da sua sexualidade e ter essa violenta cisão de quem você é e do que querem que você seja. Por mais irônico que pareça, foi nessa escola católica que mais conheci pessoas LGBT’s - muitas delas ainda são minhas amigas até hoje - E foi a mesma que aclamou e usou como propaganda uma equipe com o nome “Dandara Vive”, que foi finalista da Olimpíada Nacional de História do Brasil (ONHB) na UNICAMP, em 2017.
Minha equipe e outros alunos fizemos um estardalhaço nas redes sociais. Postamos foto do cartaz, um texto enorme sobre a situação. Tivemos rapidamente uma aderência de outros alunos e de outros estudantes fora da escola. Ameaçamos de processo e refizemos o cartaz. Fiz vários vídeos agradecendo o apoio e um local da sala serviu de altar em nosso apoio, grudaram post-its com frases como “LGBTfobia é crime” e outras mais.
Nesse meio tempo, o nosso querido professor veio conversar comigo perguntando o que tinha acontecido e que seria melhor apagar a publicação para a situação não piorar. O problema é que ninguém segura vários jovens revoltados. A publicação estava não só no meu perfil, mas de outros alunos e muitos comentários. Ele disse que a direção tinha conversado com ele e falaram que iam conversar com a gente, conversa que até hoje não aconteceu também.
Outro grande problema foi que, por conta da repercussão e falta de comunicação entre alunos e direção, eu fiquei extremamente ansioso com a situação, possivelmente uma das minhas piores crises. Sonhei que o professor era demitido e que a culpa era minha, foi um grande horror. Eu ficava gelado só de pensar nesse cenário acontecendo. Duas semanas depois, outro professor queria que eu explicasse o que tinha ocorrido e simplesmente eu não conseguia falar, numa espécie de choque no qual as palavras não saem e seu corpo enrijece.
O que quero deixar como reflexão é: educadores, deixem seus alunos se expressarem e contribuírem de alguma forma, acolham seus alunos. É papel das escolas o compromisso com o saber, mas entender-nos como seres humanos é um valor mais importante ainda.
Por fim, a direção não resolveu nada, os cartazes foram novamente retirados pois íamos voltar à sala e o assunto esfriou. O professor não foi demitido, as profissionais homofóbicas continuam lá e espero que os alunos hoje não sofram tanto como as outras gerações de alunos sofreram.
RESENHA DA SEMANA
Antes de tudo, um fator interessante nesse disco foi o contexto da carreira de Rita em 1975: recém saída dos Mutantes, primeiro disco com a Som Livre e liberdade artística, ela estava com sangue nos olhos!
Num dos discos mais emblemáticos para a cultura brasileira, Rita Lee e a banda Tutti Frutti nos entregam um disco recheado de influências do glam rock e blues rock, mas sem parecer algo diretamente importado de fora. Além da banda, a produção de Andy Mills foi excepcional para o disco. Seu conhecimento com os estúdios do Reino Unido, resultou numa produção mais rebuscada para aquela época.
Chamar a banda Tutti Frutti de banda de apoio parece irresponsável, levando em consideração a tamanha importância que tiveram na produção desse clássico trabalho. Os solos de guitarra de Luiz Carlini, especialmente na faixa Esse Tal de Roque Enrow, mostram o empenho da banda em compor algo memorável e marcante.
Na faixa título, vale destacar a forte bateria de Franklin Paolillo, uma base glam rock meio Bowie. Esse Tal de Roque Enrow é uma das melhores do disco, um baixo perfeito, escrita junto com Paulo Coelho, tem uma letra irônica que, se lançada atualmente, poderia ser um hit em potencial. Ficou marcada para sempre na carreira de Rita. Luz del Fuego tem uma composição bem feminista, que na época foi bem transgressor. Ovelha Negra dispensa comentários por seu impacto até hoje.
“Não é papel da escola discutir esses temas”. De quem é o papel, então, de discutir esses temas? Os colégios, hoje em dia, preferem focar em assuntos que levam a aprovação do ENEM e esquecem que assuntos como esses também são importantes. Afinal, como um(a) jovem trans vai conseguir entrar em uma universidade pública se estiver morto(a)?