Dentro do Casaco Verde
Pedro procurava um casaco para aguentar o inverno em Nice. Chegara à cidade seis meses antes por conta do mestrado em cinema. Com aquela sensação romântica de que tudo era muito novo e empolgante, o único ponto negativo para ele até agora eram as fortes rajadas de vento no inverno. Eram aqueles ventos frios que arrepiam só de tocar a pele.




Depois de procurar em quase todos os shoppings, decidiu ir em um brechó indicado por Lucca, colega de classe nascido e criado em Nice.
O local ficava próximo à Promenade des Anglais, um dos pontos turísticos da orla. Ao entrar na loja, Pedro foi tomado por uma sensação de nostalgia. A loja se chamava “Nouvelle Chance”, o que Pedro achou irônico. Possuía cheiro de patchouli, incenso e uma leve nota de mofo ao fundo. Afinal, com tanta quinquilharia, o cheiro de mofo tinha que vir de algum lugar.
A Nouvelle Chance era conhecida por vender de tudo: de pequenos souvenirs a TV’s antigas, toca-discos e roupas. O setor de vestimentas masculinas ficava no fundo da loja, num setor mal iluminado e reduzido a algumas camisetas longas, calças e três pares de casacos.
Quando bateu os olhos em um casaco verde com botões dourados, Pedro sentiu que deveria levá-lo. Decidiu experimentar. Ao vestir, a peça entrou como uma luva: no tamanho certo nos ombros e no caimento dos braços. Foram os 50 euros mais bem gastos desde que chegou.
Como um bom brasileiro, saiu do brechó vestindo o velho-novo casaco. Sentia-se uma nova pessoa, com o verde do casaco camuflando-o entre as palmeiras altas da cidade.
Chegou feliz no quarto-e-sala que habitava e pendurou o casaco no cabide, tomou um longo banho e se preparou para dormir. Jantou o yakissoba requentado do almoço, do restaurante que ficava de frente ao apartamento, e tomou com a cerveja Blue Coast, que tinha se tornado sua favorita. Dormiu antes mesmo de assistir o jornal das 20 horas.
Colagem digital feita por mim: rótulo da Blue Coast sobre o mapa de metrô de Paris. Feita no Canva
O cansaço que sentia era cada vez maior desde que trocou o calor de Fortaleza pelo calor do mediterrâneo. Sentia saudades de casa - como se diz em francês dépaysement1 - sua cabeça pensava e via francês 24 horas por dia, colocando em prática os cinco anos estudando a língua com afinco. Era algo além do cansaço físico, era um esgotamento mental.
Em alguns fins de semana, para não se esquecer onde era sua verdadeira casa, Pedro tirava o dia para aproveitar a solitude, ouvir música brasileira e relaxar em casa. Um dia para pensar e viver em português. Les jours de dimanche2 pediam essa volta da alma para o Brasil, mesmo estando a mais de sete mil quilômetros de casa.
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Naquela madrugada, Pedro sonhou com dois homens conversando em francês. Foi percebendo que eles falavam sobre amor e sobre família. Parecia uma conversa bem acalorada. Não soube dizer exatamente onde o sonho se passava. Parecia seu bairro em Nice, mas diferente. Estava distante, enquanto o casal conversava a duas mesas à frente.
Poderiam ser amigos, mas quando se é, sabe-se. E eles não pareciam apenas amigos ou colegas de quarto. Os dois homens tinham um olhar doce um para com o outro. As tragadas de cigarro ficavam cada vez mais próximas à medida que conversavam, e Pedro, em sonho, assumia-se como voyeur. Tentava falar algo, mas nenhum som saía de sua boca.
Acordou de supetão às duas da manhã por conta das rajadas de vento que invadiram o apartamento, soltando a cortina que estava mal colocada na parede. Não podia fazer muitas mudanças no espaço que era alugado. O tecido leve se soltou, se transformando em um grande véu branco. Assustado e no escuro com o apartamento tomado pelo tecido esvoaçante, achava que se tratava de uma assombração.
Quando se acalmou, tirou toda a cortina e voltou a se deitar. Acordou justo na hora que o sonho estava mais intenso, com o casal se aproximando para um beijo. O seu despertar foi tão rápido, que não percebera que o casaco verde havia caído do cabide. Da queda, uma carta saiu do bolso lateral, que na empolgação da compra, passara despercebido pelo novo dono. A carta estava protegida por um papel conservado pelo tempo, no qual se lia: Pour Clément
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Na manhã seguinte, ao acordar às 8h, deu de cara com o casaco no chão e o pendurou de novo. A carta, datada de 1978, ficou nua no chão, pronta para ser lida.
Surpreso com a conservação do papel, Pedro sentou-se no sofá e a degustou linha por linha.
Clément, mon amour
Escrevo esta carta com lágrimas nos olhos. Já é a terceira tentativa de escrita. Se eu rasurar, entenda que é um momento no qual me engasguei com minhas lágrimas. A palavra sai atropelada antes da emoção.
Fui muito feliz nesses meses ao seu lado. Das nossas caminhadas na Promenade des Anglais, em nossos sorvetes nos fins de tarde, nos beijos roubados, tímidos e esquecidos espalhados nas esquinas desta cidade.
Você foi meu sol durante esses dias. Digo sol não somente pelo seu sorriso magnético, mas por ter me aguentado durante minha pior fase deprimida. Clément, você sabe da principal razão da minha infelicidade. Minha família quer algo que não quero e que não sou. Eles querem que eu seja só mais um homem italiano: alto, misterioso, casado com uma mulher e com uns dois filhos, pelo menos.
Já desabafei com você muitas vezes, mon amour. Eu tenho um medo paralisante de decepcionar minha família. Eu faço o meu melhor, mas o sentimento de culpa se instala no meu peito e na minha cabeça, me dando crises horríveis de insônia.
Clément, mon soleil, temos que parar o que temos. Minha mãe já suspeitava das nossas saídas cada vez mais frequentes e já me disse coisas absurdas sobre eu e você. Já ameaçou me levar de volta à Itália, onde mora minha avó, duas vezes mais rígida e católica que minha mãe.
Decidi pelo meu bem ir logo à Itália. Não deixar que minha mãe sinta que ela ainda tem tanto controle sobre mim e isso fazer com que ela e seu narcisismo coloquem um degrau acima da minha cabeça. Vou e espero passar pouco tempo. Rezo para que, caso eu não volte, que eu fuja para bem longe dos olhos superprotetores de Vó Giorgia.
Espero ainda te mandar correspondências, pedaços de mim, fotografias e poemas italianos traduzidos para o francês. Ah, o francês, a língua do amor, a língua do nosso amor, das nossas confidências.
Eu ainda te amo muito e te amarei muito mais. Obrigado por ter me feito homem, por ter me feito humano.
Mil desculpas por isso
Te desejo o melhor sempre,
Do seu amado,
Pierre G.
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Pedro só voltou à realidade após outra rajada de vento penetrar sua casa. Manchou a carta com suas lágrimas e percebeu que passou cerca de cinco minutos absorto depois da leitura.
Não bastasse a triste despedida, o autor da carta tinha o mesmo nome que o seu. Pedro e Pierre são só letras que deságuam no mesmo nome, no mesmo mar.
Ficou se perguntando será que Pierre e Clément mantiveram contato? Será que Pierre viveu sua triste vida como heterossexual tentando deixar sua família orgulhosa? Será que Clément fez o mesmo?
Agora, o casaco que antes trazia alegria e uma certificação social de que morava na França, se transformava em um sentimento agridoce de tristeza com preocupação com tantas perguntas do casal que foi obrigado a se separar. Esses pensamentos lhe desorganizavam a cada rajada de vento e a cada nova estação que se abatia sobre o casco verde. Pedro sentia ele, Pierre e Clément unidos pelo tecido verde-floresta.
Observações!
1 - Este conto foi um desafio do grupo de escrita do telegram criado pela escritora que está no substack como Galáxia de Palavras, o tema era:
EXERCÍCIO DE ESCRITA (#41): Você compra um casaco antigo numa loja de roupas usadas. No bolso há uma carta de amor. Quem escreveu a carta? Para quem? Transcreva a carta.
2 - Essa foi minha segunda vez escrevendo um conto, o primeiro está linkado logo abaixo:
3 - Todas as fotos que compõem esta edição foram tiradas e editadas por mim :)
4 - A foto do casaco verde que está na header deste conto foi gerado por meio da IA Aria, do Opera. Quis experimentar essa ferramenta que tenho tanta resistência. Depois de seis perguntas, ela me gerou essa imagem interessante e próxima do que estava pensando
Essa foi uma palavra que aprendi recentemente em francês: é similar ao brasileiro para saudade ou ao homesick, do inglês
Tradução: Os dias de domingo