Tudo é um sinal : memórias de Natal
2024 - fui de carro pelas praias do Nordeste e tive uma epifania envolvendo viagem de carro, pássaro e minha tia falecida
* Nota da edição - Esse texto foi escrito em julho do ano passado, quando passei as férias em Natal e conheci Pipa e São Miguel do Gostoso. Julho de 2024 foi um período bem intenso: tinha acabado de me formar em jornalismo e estava perdido. Ainda estou, confesso.
Então, o texto ficou esse fluxo de consciência meio volta ao passado. Não sei bem nomear o que é. Só coloquei a ponta da caneta no meu caderno de viagem e escrevi. Tentei ao máximo replicar o que esteve escrito no caderno esse tempo todo.
Ao final, outro conjunto de palavras que veio ao papel depois de eu ter visto um peixe, da espécie Paru, nadando sozinho no Aquário de Natal.
Enquanto esse texto é publicado, estou no Rio de Janeiro com Arthur, meu namorado (e muitas vezes, editor dos textos da ócio róseo).
Espero que gostem dessa edição e não hesitem em deixar comentários e compartilhar com seus amigos. Um abraço xx
Nunca pensei que fosse frio na cidade de Natal. Escrevo esta linha às 4h46min enquanto um pássaro canta incessante e lindamente e um tímido nascer do sol desponta na minha frente.
Agora, o passarinho parou. O vento frio bate nos meus pés. Por sorte, visto uma calça moletom, o que ajuda um pouco. O mar quebra ao longe, duas ruas abaixo.
Adoro essa expressão quebra-mar. É a onda que bate, que quebra, tortura e assola a pedra, a areia e o povo. É a mesma “quebração” que esse frio tá fazendo agora.
Foram quase oito horas de carro para chegar até aqui. Foi cansativo. O banco da frente batendo no meu joelho, meu pai fazendo as ultrapassagens que me deixavam nervoso e o dramin que tomei e não fez efeito. Pelo menos tive muita música e esse caderno pra me acompanhar.


Sempre gostei de viajar de carro, e analisando, é uma questão geracional. Explicarei:
Meu avô trabalhou em vários postos de gasolina pela extinta empresa Esso. Viajou esse Brasil inteiro e morou no Pará e Bacabal (MA), onde nasceram meu tio e tia, respectivamente. Sobre postos de beira de estrada, restaurantes e mecânica, meu vô é o bicho! Inclusive, na estrada, insistiu em passar em frente um restaurante de beira de estrada que ia nesses tempos, mas não encontramos (e provavelmente deve ter fechado).
Com cinco anos de idade, fui até a Bahia de carro. Num Astra 2004 muito confortável estavam meu pai, meu avô, minha avó, mãe e irmã do meio, que na época tinha um ano e meio de vida.
Desta viagem lembro de alguns poucos momentos. De dormir encostado no ombro da minha vó, do meu avô mexendo o suco com a faca suja do almoço que tinha acabado de comer. Lembro do Guia Quatro Rodas sendo nosso mapa em um período em que GPS era algo inexistente. Lembro da ausência de malas e divertidas histórias que vieram daí.
Eu lembro, I remember, yo me recuerdo, je me souviens até demais…
Já com uns dez anos fomos até Maragogi, em Alagoas. Nunca vi água tão cristalina. Aqui a dinâmica já era outra. A irmã mais nova já era nascida. O carro também fora outro, uma Doblò, aquele carro de sete lugares da Fiat. Saudades desse carro, tanto é que tivemos três versões dele. Em ambas as viagens fomos parando no caminho e se hospedando nas cidades.
Nessa de Maragogi, lembro de dormir no sexto lugar do carro, onde também era bagageiro. Era eu, malas em todos os lugares, e minha irmã do meio, Mariana, no outro assento do carro. Lembro que Madonna tinha acabado de lançar Give Me All Your Luvin’ e essa foi a nossa música de viagem. Lembro que além de tudo isso, Maragogi também tem deliciosos biscoitos de sequilho. Gostamos tanto que trouxemos aqueles potes grandes de manteiga lotados de biscoito.
Vasculhei tanto a memória que não me dei conta que já são cinco da manhã e o céu já é um pouco mais azul.
Me lembro também de quando fui à Recife, me encontrar com a Tia Nirvanda. Uma mulher muito querida, que faleceu em 2016, e da qual sinto falta. Ela gostaria de estar lendo isso. Sempre me incentivou a leitura e escrita. Lembrando dela, comecei a chorar, isso acontece nas vezes que lembro dela.
Eu lembro da primeira vez que ela veio a Fortaleza. Veio passar o natal com a gente. A vinda dela deu certinho com a data do lançamento do livro que eu tinha feito com minha turma de primeiro ano do fundamental. No meu primeiro colégio, todo final de ano a turma lançava esse projeto. Um ano era tirinha, outro era conto, teve uma época que foi uma biografia.
Dei uma cópia para ela. Adorou, disse que eu levava jeito e que deveria continuar escrevendo. Não sei se disse isso por ser a tia legal ou porque realmente ela sentiu algo lendo um texto mal feito por um menino de dez anos. Prefiro me apoiar na primeira ideia.
Dedico a ela esse frio que passo agora na varanda de entrada do hotel, que sinto que ela está aqui comigo, personificada no vento que sopra ou no passarinho que voltou a cantar. Se alguém me ver chorando agora (o que é difícil), digo que é porque tenho tesão em ver nasceres do sol e que isso acontece aqui e acolá.
Eu lembro, je me rapelle, I think about it sometimes… Eu lembro até demais e as vezes isso é um castigo.
Cinco minutos se passaram e já viajei mentalmente dez anos, já chorei lembrando da minha tia e tô com o nariz entupido, o vento frio também não ajuda nessa situação. O céu já se apresenta laranja e o Morro do Careca aparece, desejando um bom dia.
Que todos os nasceres do sol sejam dedicados a Tia Nirvanda, ao renascimento pessoal e ao tanto de laquê que ela usava no cabelo.
Todas minhas palavras são dedicadas a você.
Mario Henrique
19-07-2024
PS: Video em timelapse feito no dia que esse texto foi escrito.
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De dentro do caderno
SOLITÁRIO PEIXE EM SEU SONHO DE VIDRO
Um peixe me encara e tento decifrar o que ele quer
Ele bate a cabeça na parede onde há um desenho de um coral falso
Tanto a explorar no seu mundo de vidro
E eu, com medo, duvido
Que o peixe entenda a vida
Ele batia na falsa parede sem parar
Pensei que ia ver ele se ferir
Dificil viver nesse mundo de cão
É o peixe que nadava
Em direção ao nada
E nenhum pensamento passava
Por trás de seus grandes olhos
O peixe
Sozinho
Em seu mundo de vidro
Sem o desejo plástico
Sem o sonho vivido
Eu me sinto meio peixe
Mesmo que eu não deixe
Minha mente volta para lá
O peixe sozinho a nadar
Em seu mundo de vidro
Sem seu sonho vivido
A vida parada
Mal pensada
Mal amada
Olhei tanto para o pobre peixe
Que o reflexo se tornou um
só
Ele já não estava mais só
Eu vivia com ele
O homem, o peixe
O passado, luzes e feixes
Será que tenho futuro
No meu mundo com muros?
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Lindo relato de viagem que nos faz ir além da viagem que você estava, Mario! Lembrei da obra "O Turista Aprendiz", do seu xará Mário de Andrade.